Aquela poderia ser uma manhã qualquer não fosse o fato de a campainha tocar às 8 horas e tirar o conde da cama. Acostumado a dormir até mais tarde, ele teve de colocar seu roupão de cetim azul para atender à porta. Uma nesga de luz solar penetrou nos seus olhos, ofuscando sua visão. Mesmo assim, ele pode distinguir o vulto de várias pessoas que se acotovelavam junto à soleira da porta. Vizinhos conhecidos de vista e estranhos, alguns com archotes acesos nas mãos, incoerentemente com a vasta luz solar da manhã. À frente da turba assanhada, ele reconheceu o dr. Martim, delegado titular da cidadezinha de Retiro Santo.
– Conde Milos, desculpe o importúnio a estas horas... – disse sorrindo o delegado.
– Importúnio algum, dr. Martim! – sorriu gentilmente o conde – Queira entrar e fique à vontade.
Alguns dos que acompanhavam o delegado manifestaram sua intenção de também adentrar na casa, mas o delegado permitiu apenas que dois deles o fizessem. Um deles, o conde já havia visto, era o Juriti, empregado da vendinha onde o conde costumava comprar seus charutos. Ele trazia nas mãos uma estaca pontiaguda. O outro – um mulato magro de olhos esbugalhados de espanto – segurava nervosamente alguma coisa embrulhada num pano de saco de aliagem.
– Mas a que devo a visita? – perguntou o conde, oferecendo assento numa das poltronas das sala.
– Infelizmente, conde, minha visita não é de cortesia. Eu gostaria que o senhor me acompanhasse até a delegacia para responder a umas perguntas...
– Infelizmente não posso fazê-lo, pois não costumo sair à luz do dia – respondeu o conde.
– Viu só? Viu só? – gritou o mulato assustado, cutucando o delegado.
– Cuidado com ele! – advertiu o Juriti.
O delegado olhou contrariado para seus dois acompanhantes e continuou:
– Bem, assim sendo, acho que posso adiantar as investigações aqui mesmo.
– Pergunta pra ele por que ele não pode sair à luz do dia! – cutucou o Juriti.
O delegado se impacientou:
– Ou vocês me deixam conduzir as diligências ou eu boto os dois para fora daqui!
Depois, voltou a sorrir para o conde:
– Mas, à propósito: o que o impede de sair à luz do dia?
– Como o senhor pode ver, delegado, eu sou completamente albino, os raios do sol fazem mal à minha pele. Além do mais tenho propensão a câncer de pele... – explicou o conde.
– Claro, claro! É compreensível. Mas vamos direto ao assunto: o senhor conheceu Carla Martina, dançarina do "Exciting nights"?
– Não estou ligando o nome à pessoa... – considerou o conde.
– O senhor chupou ela! – gritou o mulato nervosamente assustado.
O conde corou visivelmente as maçãs do seu rosto lívido e sorriu sem graça para o delegado.
– Doutor, eu me reservo o direito de não comentar meus relacionamentos íntimos... – disse ele.
– O senhor me desculpe, conde, cidade pequena, o senhor sabe como é... Esse pessoal é supersticioso demais... Estão acusando o senhor...
– O senhor é vampiro! – adiantou-se o Juriti erguendo a estaca de sua mão.
– Perdão, delegado, receio não ter entendido direito do que me acusam... – disse o conde.
– Eu boto vocês dois para fora daqui já! – gritou o delegado para os dois acusadores – não vou tolerar mais interrupções!
– Mas explique-me melhor o que está acontecendo, doutor. Eu já fui várias vezes ao "Exciting Nights", mas não conheço a pessoa a quem o senhor se referiu...
– Carla Martina. Foi encontrada morta nesta madrugada num terreno baldio atrás do cartório. Tinha dois furos profundos na garganta e estava totalmente sem sangue...
– Manda ele arreganhar os dentes, manda! – sussurou o mulato.
O conde ouviu isso e abriu uma sonora gargalhada. Não era preciso ser bom observador para ver que o conde tinha os dentes perfeitamente normais.
– Tá se rindo? – disse o mulato, levantando-se do sofá e desembrulhando o que trazia nas mãos pois eu tenho uma surpresinha para o senhor.
Dizendo isso, ele avançou para cima do conde, adiantando uma enorme cruz de madeira.
Refeito do susto pela ação intempestiva do rapaz, o conde comentou:
– Obrigado, mas não estou interessado em mais uma cruz. Eu já tenho várias na minha vida – E, com as mãos, ele mostrou as paredes da casa onde se destacavam vários crucifixos ricamente trabalhados, evidenciando a mania do conde de colecionar cruzes e crucifixos.
– Pra mim já chega! – gritou o delegado, levantando-se de supetão do sofá. – Vocês estão me fazendo passar um ridículo aqui...
Dizendo isso, ele abriu a porta e colocou os dois capiaus para fora de lá. Com gestos das mãos dispensou os curiosos que aguardavam lá fora e fechou a porta, ficando a sós com o conde.
– Até agora, eu não entendi direito qual a acusação que pesa sobre mim... – comentou o conde.
– Essa gente parece não ter mais o que fazer! – disse o delegado. – Eles cismaram que tem um vampiro atacando na cidade. E como o senhor é novo por aqui, o senhor sabe...
O conde riu às gargalhadas:
– A queixa devia vir dos meus empregados. O que eu sugo do sangue dos coitados, fazendo-os trabalhar muitas vezes além do horário. Mas eles são gentilmente remunerados!
– Ainda bem que o senhor leva tudo na esportiva! Eu estou constrangido por ter me abalado até aqui por uma acusação dessas. – sorriu apologético o delegado.
– Já que está aqui, doutor, permita-me oferecer-lhe um cálice de vinho da minha adega. – propôs o conde, levantando-se.
Com isso, ele conduziu o delegado até o porão onde apresentou sua adega farta de toda qualidade de vinhos.
– Desde que tomei posse do cargo nesta cidadezinha – comentou o dr. Martim – eu vi que o pessoal daqui era muito simples e crédulo demais... Foi em meados de...
– 1960? 1950? – perguntou o conde.
– Não! Eu não sou tão velho assim... Foi em 1978.
– Eu me referia à safra do vinho. – sorriu o conde.
– Ah! Desculpe-me... Se tiver um tinto da safra de 52 eu agradeceria.
– Tinto... aqui está! Uma boa safra essa, sem dúvidas – disse o conde pegando uma garrafa – pode ficar com ela. Eu aprecio mais o vinho branco.
Dizendo isso, o conde acompanhou até a porta sua visita inesperada que agradeceu e saiu com a garrafa de vinho debaixo do braço.
Depois, o conde dirigiu-se ao seu quarto, tirou o roupão e voltou a deitar-se na cama
"Admiro um bom apreciador de vinhos" – pensou ele.
Como havia perdido o sono, pegou um livro sobre vampirismo e pôs-se a ler. Depois, levantou-se, foi até a cozinha e abriu a geladeira. Sorriu, lembrando-se do ocorrido daquela manhã.
– Eu, vampiro... Esse pessoal é mesmo ascético demais. – disse para si mesmo – Mas até que seria bom se eu fosse mesmo um vampiro.
Com isso, ele pegou da geladeira uma bombinha de sucção com dois tubinhos e agulhas nas pontas.
– Seria bem mais prático, com toda certeza. – sorriu ele, enquanto lambia das agulhas da bombinha um resto de sangue que ainda não havia coagulado.
Talvez.
Há 13 anos
Parabéns pelo seu blog! desejo muito sucesso! continue escrevendo! Abraços
ResponderExcluirhttp://antoniopimenta.blogspot.com/
nossa
ResponderExcluirmto interessante essa ideia!
gostaria de ver um livro publicado...
ehee
flw!
Nossa, você escreve muito bemm , parabens!!!
ResponderExcluirAbração do Saci :D
gostei desse conto de vampiro ! :)
ResponderExcluirMuito bom o conto gostei =P
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